Empreendimentos

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Um duro obstáculo à revolução na Arte


Antonin Artaud, artista francês, poeta, escritor, ator, encenador, destacou-se por sua rebelião contra as falsas aparências e os comodismos sociais. Sua intenção era utilizar a Arte, principalmente o Teatro, como um meio de cura e purificação do ser humano; retirar-lhe as ilusões e enganos, aproximá-lo de sua essência real. O escritor Dan Tell escreveu sobre Artaud em seu livro A Sombra do Pai. Agora vem à público um texto do autor até então inédito, que a princípio faria parte do livro, mas que foi excluído da obra por razões de adaptação com o tema principal proposto. O autor está distribuindo gratuitamente este texto por julgá-lo útil e interessante, já que revela muito do espírito deste tão famoso quanto incompreendido artista, expondo, entre outras coisas, a sua rebelião ferrenha, idealista, a sua insatisfação, a sua ira quase santa de um anjo guerreiro caído contra a comodidade e mediocridade que prospera na sociedade e na Arte. Convido você, caro leitor, a conhecer o texto. Vamos lá.   

- Conversa de Artaud com seu amigo e psiquiatra Allendy

- Que confusão vocês aprontaram, hem?                                     
O psiquiatra René Allendy, sentado em sua cadeira giratória, largou o jornal em cima da escrivaninha de sua biblioteca. Na página à mostra, o título se revelava:
FILME CANCELADO APÓS PROTESTO SURREALISTA.
Olhei apenas de relance a manchete, que já conhecia, e dando-lhe às costas, passei calmamente a observar a pequena biblioteca em que estávamos. À minha direita, na parede lateral, livros de medicina e psicologia exibiam das prateleiras o seu status de saber científico. Afastei-me deles, de sua luz muitas vezes perigosa, pois que de tão forte e rígida, facilmente cegava. Atraía-me, como sempre ocorria, uma outra estante, na parede oposta. Ali, uma natureza muito diversa de publicações, romances e peças de teatro, lado a lado com volumes sobre magia, astrologia, cabala, misticismo, numerologia, espiritismo, sempre a me sussurrar as suas promessas de sua ciência oculta. A aura de encanto que me seduzia quebrou-se quando a voz de Allendy retornou, seu tom forte e alto como um chamado de volta à realidade.   
- Diz aqui, no jornal, que depois do protesto de vocês, o filme não vai mais ser exibido.
- Eu sei – respondi, e retornei aos livros, retomando a minha atenção perdida. Procurei, entre vários títulos, até retirar um que me chamou mais a atenção.
- Devem estar morrendo de medo que vocês aprontem um novo escândalo – concluiu Allendy.
Em minhas mãos, sob uma capa de couro vermelho e duro, em letras negras bem delineadas, li o título: “A Cabala e o Poder da Palavra”.
- Quanto a isto, podem ficar descansados – Comecei a folhear o livro, detendo-me em uma ou outra página, com certa curiosidade – Daqui em diante, “A Concha e o Clérigo” não me importa mais. A diretora não quis me ouvir, fez o filme sem me consultar em nada, deturpou meu roteiro e minha proposta. Mas acabou. Este é um assunto encerrado.
- Ora, que bom ouvir isso. Estava achando que essa sua decepção ia demorar a passar.
- Pois já passou. – Fechando o volume, devolvi-o à estante, em um gesto decidido, que reforçava minha resolução. - De agora em diante, somente me importa o Teatro Alfred Jarry. É nele que vou colocar todas as minhas forças. 
- Entendo. Afinal, sei que considera este projeto muito importante.     
- Importante? Sim. Mas na verdade, essa palavra não diz tudo. O Teatro Alfred Jarry, Allendy, é minha grande esperança. Faz parte de um objetivo que eu dedicaria toda a minha vida para alcançar. 
- Ora, não duvido – Allendy ergueu-se de sua cadeira. Com curtos passos avançou em minha direção, mantendo a cabeça baixa, como se refletisse no que dizer, e quando parou, firmou-me um olhar pleno de interesse.    
- Mas agora, tenho-lhe uma pergunta – disse-me. – Se tivesse que explicar, em poucas palavras, a essência, o ponto principal do que pretende com o Teatro Alfred Jarry, o que me diria?
- Bem, acredito que já lhe falei sobre isso.
- Eu sei. Mas acho que poderia explicar com mais detalhes. E assim, quem sabe, possamos até descobrir algo novo que ainda não foi dito.                           
- Ora, meu amigo, sempre querendo tudo muito claro e bem definido, não? Mas saiba: o que pretendo vai muito além do que se faz hoje em teatro. E muito além da psicanálise, também. 
- Parece-me então uma idéia muito ambiciosa. Mas responda-me: o que é isto que vai tão longe, muito além da psicanálise? 
- O que é? Quer mesmo saber? – indaguei como se fosse um desafio. – Porque não pergunta isto à sua biblioteca?
- Como?
- Isto mesmo. Pergunte aos seus livros.
- Aos meus livros? – Allendy franziu suas finas sobrancelhas, sem entender.  
- Um pouco de atitude surrealista! – exclamei. - Vamos! Em primeiro lugar, é preciso esquecer aquela estante. – indiquei-lhe com o olhar o local, à minha direita. – Aqueles são seus livros científicos, a sua racionalidade. Não é o que procuramos. Mas aqui... – Diante da estante mais próxima, à nossa frente, eu sorri. - Poesia, romances, teatro, esoterismo, magia. Aqui, sim, tiraremos nossas dúvidas. Agora faça a pergunta de novo. Mas faça a estes livros. E sem pensar, retire um da estante. O título da capa será a resposta da nossa pergunta. Sem pensar! Certo? Faça agora! Vamos!
Com um sorriso e um dar de ombros conformado, um intelectual rendido às excentricidades de um artista, Allendy retirou rapidamente um dos livros da estante. Olhou para a edição por alguns segundos e depois me mostrou capa. A marca franzida na testa de Allendy dizia que ele não chegara a nenhuma conclusão.
- E então? – perguntou-me. – Este é o livro que responde a minha pergunta?
Surpreso, contemplei o exemplar na mão de Allendy. Era o mesmo que há pouco eu próprio havia folheado: “A Cabala e o Poder da Palavra”.
- Acha que não responde? – devolvi-lhe a questão, fitando-o seriamente.
- Não disse isso. Mas, como você o interpreta?
- Este mesmo livro, meu amigo, este mesmo livro, eu tirei há pouco desta mesma instante.
- Sério?
- Coincidência. Este é o primeiro pensamento que lhe vem, certo?
- Creio que sim.
- Mas é um pensamento pobre. Pobre porque simplista, porque não toca nossa emoção. Eu prefiro pensar outra coisa, bem mais interessante, bem mais surreal: que o livro se esforça por se mostrar. Ele tem algo importante a nos dizer. Se prestarmos atenção, saberemos: ele está falando conosco.            
Allendy sorriu diante da idéia.
- E sabe o que ele diz? – indaguei.
- Não. Mas gostaria de saber.                                         
- Ele diz: Allendy, como é que não me ouve? Já estou gritando o que posso. O que Artaud quer? O meu título diz tudo: Esse artista louco, ele quer um teatro que seja como a Cabala. Isso mesmo! A Cabala! Essa poderosa e antiga tradição mística dos hebreus. Que nesse teatro a fala tenha a força mágica dos antigos místicos e alquimistas. Que a palavra não seja apenas informação, mas também um poder. Que mesmo sem ser compreendida, provoque imagens, sentimentos, vertigens. Assim como a Cabala, todo o teatro, desde o figurino, cenário, luz, toda a encenação, enfim, deve trazer para o público uma realidade que todos desconhecem. Ou que fingem desconhecer. Mesmo que cruel, mesmo que dolorosa. Que todos sintam esta realidade, que não poderão ignorar nem esquecer. E depois de uma peça assim, como um iniciado que passou pelos Mistérios antigos da sabedoria, a platéia não será mais a mesma.
Allendy ergueu as sobrancelhas, muito espantado.
- Então é isto tudo que este livro está dizendo?
- Para mim, sim.  
- Interessante. Como psicanalista, concluo que seu inconsciente interpretou este título, e tirou as conclusões conforme seu próprio desejo.
- E como Artista, afirmo que o Livro falou – brandi o volume em minha mão, antes de devolvê-lo à estante. - e que não só ele, mas todos os outros livros, e mais, todas as coisas e objetos à nossa volta podem nos falar também. Basta sabermos perguntar e escutar. Este é o fato.
- Certo. Vejamos se entendi a idéia. Tudo pode ter um poder e um significado. Então, vejamos Até mesmo... esta caneta. – como se, ao acaso, percebesse o objeto repentinamente, Allendy retirou-o do bolso de seu casaco. – Ela pode também quem sabe lhe falar algo sobre sua busca no Teatro?
- Sem dúvida. Basta saber como escutar. 
- Então vamos ver. Tome. O que ela lhe diz, Artaud?  
Allendy estendeu-me a caneta com um brilho de interesse analítico no olhar, o qual disfarçava com um sorriso cordial. Percebi que aquela pergunta era um teste, através do qual ele observaria minhas reações, pronto a retirar delas sabe-se lá quais conclusões científicas e psicológicas sobre minha pessoa. Aceitando o jogo, recebi dele a caneta. 
- O que ela me diz? Muito bem – comecei a movimentá-la em minha mão, examinando-a em vários de seus ângulos, como que procurando, na sua forma prateada e fria de metal, uma importante revelação. - Uma caneta ... – eu ponderava. – Um instrumento de expressão, de comunicação ... – Uma pausa e, de súbito, as palavras vieram, como se a resposta despertasse do nada. - Ela me diz: Revele, Artaud, revele o que está oculto. – impulsivamente, aproximei-me da escrivaninha de Allendy, e ali vi que me esperava uma folha de rascunho solitária  – Como uma lâmina, vá direto ao coração da platéia. – desci a ponta da caneta como uma arma, ferindo a superfície macia do papel. – Vamos, Artaud, no coração de todos, abra passagem, escreva! E também na pele,  nos  nervos,  com  tinta  de  sangue  e  fogo,  que não sai! Que marca sua tinta na carne rebelde, e que não sai! Escreva! Os faça sentir! Os faça ver!  E S C R E V A!
Minha voz ecoava pela biblioteca, com fúria esganiçada, em um som agressivo, como que saído dentre as engrenagens de alguma máquina feroz. Oprimindo o papel com linhas aleatórias, em ziguezague, finalizei um círculo brusco e indefinido, em cima do qual a caneta caiu, abandonada, com um pequeno baque, como um decisivo ponto final.
Voltei-me seriamente para Allendy, minha respiração, que havia se alterado, agora acalmava-se aos poucos. Ele, por sua vez, fitava-me com atenção, sério e um tanto admirado.
- Aí está, Allendy. Sua caneta falou. 
- Pelo visto, falou sim. Foi surpreendente.     
- Este afinal é o ponto - expliquei. - Encontramos aí toda a dificuldade. Como se chegar até as pessoas? Como tornar o teatro essa lâmina afiada, que não se consegue ignorar?
- Ser ouvido... Diria que esta é a sua maior ambição?
- Minha ambição é comunicar certa realidade. Para isto iniciei o Teatro Alfred Jarry. Para torná-lo um meio de comunicação perfeita. Como chegar a isso, confesso que ainda não sei exatamente. Tenho apenas minhas idéias e a fé de que chegarei a algum lugar. Digo que não tem sido fácil. Principalmente agora, em que nosso teatro passa por uma crise, e tudo parece estar contra nós.   
Aproximando-se da única e imensa janela da biblioteca, detive-me próximo à vidraça, enquanto a tarde morria, aprofundando com suas sombras o desgosto em meu semblante. 
- Porque diz isso? – indagou Allendy.
- Por quê? É uma boa pergunta. Pode parecer estranho, Allendy, mas quando penso no Teatro Alfred Jarry, no que pretendemos fazer, e nas dificuldades com que lutamos, me vem sempre esta sinistra impressão, como um peso sobre minha cabeça. Sinto como se fosse uma força, algo externo procurando entrar em mim e me fazer desistir de tudo.
- O que mais poderia me dizer sobre essa sensação?
- Nunca sentiu algo do tipo? Que quando tentamos criar algo verdadeiramente revolucionário, capaz de mudar a essência da vida das pessoas, então a política, a sociedade, o sistema todo parece se erguer contra nós, e colocar todo tipo de obstáculo, para nos fazer parar?
- Então acredita que estão todos contra você?
- O fato, Allendy, é que não estão todos a meu favor nem em favor do teatro que eu pretendo alcançar. Mas se quer mesmo saber, eu vejo a sociedade como se fosse um grande ser. Imagine esse ser, essa inteligência, formada pelos pensamentos e pelas emoções de todas as pessoas. Esse ser com suas idéias, seus costumes definidos, não quer que lhe mostrem algo diferente. Tem medo de perder a sua falsa segurança, e se pretendem lhe mostrar algo maior, algo de fato importante, reage com ódio. Esse ser, estes pensamentos, dizem: “Caia fora, Artaud. Não queremos sua criação. Não queremos sua revelação. O mundo está bem assim. Todos dentro do buraco, como deve ser.” É claro, se estivéssemos fazendo algo que não trouxesse nenhuma mudança, um vaudeville, por exemplo, uma comédia idiota qualquer para o público rir a toa, aí seria tudo diferente. O grande espírito da sociedade bateria palmas. E tenha certeza, as portas se abririam. Teríamos o apoio de vários empresários. Afinal, o lucro é garantido! E viva o dinheiro fácil! Viva a Arte como passatempo, para distrair o público, para controlar esse gado, para que continue manso. Pois eles não devem, de modo nenhum, ver a sua prisão. Agora, um Teatro Alfred Jarry, lógico que não pode ser visto com bons olhos. Algo na escura mente das pessoas se revolta. E então perguntam: Mas o que você pretende fazer, Artaud? Propor uma nova Arte? Transformar a vida das pessoas? Fazê-las sentir o mundo, fazê-las ver o que se esconde por trás das aparências? Mas isto dará dinheiro? É isso que perguntam esses porcos. Essa gente nojenta. E aí está a razão das nossas dificuldades. (...) 

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