O personagem
principal de O Muro Devorador é um vilão e não tem um corpo definido, nem é
exatamente uma pessoa. É algo que está nas pessoas, em algumas com mais
intensidade, em outras menos, mas sempre presente como uma doença degenerativa
e mortal na sociedade atual. Falo da
ansiedade, da pressa, da correria alarmante e demasiada que possuí as pessoas, principalmente
na nossa sociedade moderna, limitando a visão do que é essencial na vida,
fazendo com que muitos se desgastarem para terminar tarefas e mais tarefas que
apenas se multiplicam como um bicho papão que nunca sacia sua fome. É o tempo
devorador que nos faz quebrarmos nosso ritmo interno, desregulá-lo, produzindo
assim a uma espécie de neurose que não chega a lugar algum, e que muitos
defendem como o seu dever. Mas que dever é este trabalho que nos consome, que
nos desgasta ao longo da vida, em troca de um benefício muitas vezes ilusório que
não se sustenta? Que demônio é este que se apodera de nosso corpo e nos
convence a corromper progressivamente nosso sistema nervoso, nossas células e
nossa vida? O medo da não sobrevivência certamente está envolvido. Trabalhe
para poder sobreviver, senão é a fome, a falta de abrigo, de roupas, a falta de
tudo. Mas com certeza também está envolvido um falso sentimento de merecimento
e honra. Trabalhe porque é digno, trabalhe porque é inferior ser preguiçoso,
porque você deve cumprir o seu dever. Mas que trabalho e que conquista valem a
destruição do nosso bem estar físico e emocional? Esta possivelmente seja a
questão mais importante a se colocar. O que vale a quebra do nosso ritmo
interno, do nosso equilíbrio, que esforços compensarão uma vida inteira
desregulada, na qual nos perdemos de nos mesmos?
Minha primeira
experiência com essa neurose de pressa e ansiedade que assombra o mundo foi na
família. Minha mãe foi entregue pelo próprio pai para trabalhar na casa de
outras pessoas, onde era tratada a base de gritos e maus tratos. Seu primeiro
casamento surgiu como um meio de escapar, de obter alívio da correria e pressão
a que era submetida. Quando eu era criança, ela também gritava comigo,
repetindo de modo automático o que lhe haviam feito. Contudo, embora ninguém o
soubesse na época, eu era uma criança com necessidades especiais. Meu ritmo
sempre foi lento, e desde as primeiras lembranças que tenho de mim mesmo,
parecia que o mundo ao meu redor era aquele dos astronautas a caminhar ou
flutuar pela lua. Na escola fazia tudo muito devagar, de modo que uma vez a
professora pegou o caderno das minhas mãos e escreveu o que faltava do texto
para mim, já que eu era o único que ainda não o tinha terminado. Dificuldades
para aprender, dificuldades para realizar tarefas manuais, cansaço físico,
confusão mental. Era o que sentia quando procurava aumentar o meu ritmo para
acompanhar os demais, ou para tentar atender as exigências da minha mãe. Seus
gritos de nada ajudavam, deixando-me ainda mais nervoso; eu tentava fazer certo
o que me era pedido, forçando-me a aumentar a
velocidade, o que apenas me tornava mais confuso, perdido e atrapalhado.
A neurose da agitação atingiu minha mãe, e depois me atingiu também,
desregulando o meu ritmo interno por praticamente toda uma vida. Pois em
criança desenvolvi um culpa tremenda por não conseguir superar as expectativas
dos outros, e acreditava – como me era dito – que tudo dependia apenas do meu
esforço. E assim, quando me era cobrado, sempre corria para tentar realizar
“aquela exigência”, o que me levava a me esforçar quase sempre além do meu
limite pessoal, o que resultava no aumento da minha desatenção, da minha
confusão mental e da ansiedade. O meu corpo automaticamente diminuía o ritmo,
se tornava mais lento, porque meu sistema percebia que estava sendo
sobrecarregado; mas quando me tornava assim, vagaroso, as pessoas vinham me
cobrar, e eu tentava ir além novamente, tornando-me mais confuso, ansioso, e cometendo
mais erros. Era um ciclo vicioso e realmente infernal, para o qual nada nem
ninguém se mostrava capaz de apontar uma saída.
Esta situação foi
particularmente terrível em meu trabalho, quando iniciei no serviço público
estadual, assumindo o cargo de secretário escolar. Não conseguindo me concentrar
no ambiente de trabalho, nem me comunicar adequadamente com meus colegas, tendo
cometido erros que não conseguia evitar, fui transferido para uma escola menor,
onde permaneci por anos; contudo, sem jamais conseguir me adaptar à frequente
demanda de tarefas burocráticas e de atendimento ao público do meu cargo. O
estresse que sentia era tanto que muitas vezes retornava para casa como se tudo
ao meu redor estivesse envolto por uma neblina, sem conseguir perceber muito
bem as coisas e as pessoas, como se todo meu corpo estivesse em choque, anestesiado.
Foi apenas em início de 2015 que viria a receber em Porto Alegre, RS, o
diagnóstico: Perturbação do Espectro Autista. Ou seja, desde criança eu possuía
este grau de autismo, conhecido antes na ciência médica como Síndrome de
Asperger. Os autistas em geral possuem algo chamado desordem sensorial.
Dependendo do caso, um ou mais sentidos são afetados e desregulados. Os
autistas podem se sentir incomodados com certos tecidos de roupa, ou com certas
cores e luzes, ou sons. No meu caso em particular, o que vim a notar era que
vozes falando ao mesmo tempo, barulho muito alto, movimentação intensa de
pessoas ou interrupções frequentes afetavam-me de modo negativo, causando-me
mal estar, confusão mental e perda da noção do espaço. Nestas ocasiões, todo
meu ser se fechava automaticamente para o interior. A audição diminuía, o mundo
ao meu redor parecia abafado por uma espécie de véu esfumaçado, e as pessoas
pareciam me falar de muito longe, como se pertencessem a outro mundo, opaco e
sem sentido. Após iniciar tratamento com Terapia Cognitivo Comportamental,
comecei a realmente descobrir como eu era e por que. Principalmente no
trabalho, os efeitos que as interrupções, vozes altas, carros passando na rua,
me causavam, tornou-se notório. Em 2015, antes de tirar Licença Médica, e obter
adaptação para as funções do meu cargo, chegava ao ponto de caminhar mais
rápido, quase a correr, quando passava por pessoas rindo ou falando alto, pois
a sensação era a de que as vozes eram cortantes, e que me penetravam as costas
e coluna como uma espécie de facas.
Nada melhor que um
autista para sofrer intensamente o impacto da pressa e do nervosismo que contamina o mundo. E presenciei que não somente a Escola, mas a estrutura geral
administrativa da educação em si, que deveria ser sim – devido a sua função
social – um sistema mais equilibrado, era na verdade demasiado ansioso e
neurótico. Além do meu próprio cargo, presenciei outros do sistema educacional
sobrecarregados de tarefas; por vezes uma pessoa onde necessitaria duas ou até
mais, para atender uma demanda contínua e excessiva de atividades. Na cidade de Santa Maria, próxima a minha, conheci uma servidora muito bem humorada e
atenciosa que atendia praticamente todas as escolas próximas, tendo apenas ela
o conhecimento para gerir certo programa administrativo, do qual dependia todo
o sistema escolar. Durante anos, foi-me visível o seu cansaço gradual, o abalo
do seu sistema nervoso, o seu estresse progressivo e a sua queda de humor. Quando
uma pessoa nestas condições se aposenta, o quanto já estará reduzida a sua qualidade de vida?
O interessante nisto tudo é um comentário que ouvi de uma professora também
envolvida nesta massacrante parte administrativa: “Nosso trabalho exige
bastante. Temos que estar continuamente prestando atenção em tudo para não
errar e atender ao mesmo tempo vários problemas que vão surgindo.” Esta frase
foi dita em um tom de voz particular, como se fosse algo heroico e digno estar
envolvido neste processo, mascarando o que permanece ignorado por muitos.
Contudo, a realidade não se cansa de gritar a verdade por entre mares de papéis, números e dados: “exploração
da força de trabalho”! Ou como diria o personagem Morfeus no Filme Matrix,
enquanto segura na mão uma pilha ou bateria: “Querem transformar o ser humano
nisto”. E neste panorama, o que dizer do setor mais importante da Escola, a
Direção? Igualmente sobrecarregado com uma avalanche de cálculos de contas
administrativas e de outras cobranças em geral. O que sobra de tempo para o
diretor ou diretora se dedicar a projetos educacionais, ou dar atenção ao que é
realmente essencial na escola: o processo pedagógico e a educação? Muito pouco.
E neste ponto poderíamos nos perguntar: não seria esta igualmente a intenção? Afogar
o sistema educacional em um maremoto de exigências burocráticas para não dar
tempo aos envolvidos de pensar no principal: o aprimoramento da educação? E
assim, sem avanços de discernimento, torna-se contínuo o controle de certos
grupos poderosos sobre pessoas que estudam apenas para entrar como máquinas no
sistema de trabalho, impelidas na sua essência pelo medo e pelo instinto da
sobrevivência, sem assimilarem seus direitos de cidadãos, sem tempo de
compreenderem a si mesmas, sem saberem como contribuir para modificar o mundo. Domínio,
escravidão e poder. Este parece ser o objetivo secreto por trás desta fera
selvagem e carnívora (a neurose da pressa e da ansiedade) que o sistema
alimenta com pedaços da nossa carne viva, do nosso esforço e energia em
alvoroço. E para incentivar nossa corrida suicida, o dragão oculto por trás da
sociedade e dos governos lança-nos pensamentos como: “O trabalho dignifica o
homem.” (E digo sim, mas não o trabalho além dos nossos limites); ou então
sussurra em nossa mente de forma tão ameaçadora como o maligno Sauron, no filme
O Senhor dos Anéis: “Aceite o meu domínio, se conforme, ou será pior, não terá como
sobreviver.” Contudo, o preço ao longo de uma vida se revela sempre caro
demais.
Não poderia também
deixar de mencionar aqui o atual descaso do Governo com a saúde pública. Enquanto
escrevo estas linhas, recordo de uma situação muito significativa. Soube de um
médico de origem cubana que foi criticado pelos superiores no município em que
trabalha, porque estava dando atenção demais a cada paciente que atendia. O que
lhe propuseram (ou ordenaram?) era que fosse “mais ágil” no atendimento (ou
seja, superficial), para que seu trabalho “rendesse mais”. Ou seja, o objetivo
não era um tratamento mais adequado, mas apenas que aquele profissional por si
só pudesse atender um maior número de doentes em menos tempo. Este exemplo, porém, não é nem de perto o mais
grave. Quando há falta de recursos tanto físicos quanto humanos na saúde
pública, quando pessoas morrem em grande número em salas de espera, quando um
médico, por falta de mais pessoal tem que escolher qual ferido ou emergência dar
atenção, o que pode significar escolher quem vai viver ou morrer; então, diante
de tal caos e falta de providências, com a corrupção política, com desvios obscenos de
dinheiro público – diante de tudo isto, os responsáveis por todo este estado de
coisas se acomodam no conforto de seus ganhos, deixando para os que estão
abaixo todo medo pela necessidade de sobrevivência, toda neurose, ansiedade,
pressa ou agonia diante de um sistema precário, injusto. O que pensar disso?
Pelo número de vidas arruinadas ou perdidas, o descaso dos governantes e a
manutenção de um sistema como este não equivaleria praticamente a assassinato
premeditado? Mas o problema central talvez seja a hipnose, a voz do Dragão que
continua gritando na mente coletiva: “Corram e trabalhem! Sem tempo para pensar
em mais nada! Sobreviver! Sobreviver! Ou se divertir para esquecer! Se distrair!
Esquecer! E não saibam – principalmente nunca saibam – que são responsáveis por
manterem no conforto e no luxo os canibais que os estão devorando.”
Enfim, baseando-me no
que já foi exposto, eu acredito que O Muro Devorador, o seu significado ou tema
pode ser pensado e utilizado como símbolo de algo bem maior, de uma questão
grave presente em todos os setores sociais, além da vida pessoal de cada um. No
início da história, O Muro Devorador menciona algo de minha experiência no
trabalho, e no desenrolar da história apresenta uma verdadeira batalha contra a
neurose da pressa e da ansiedade, que é descrita em detalhes no texto em sua furiosa
representação mental e emocional. O enredo é baseado em experiências verídicas
de Éverson Moraes, que desde a infância passou por situações difíceis que o
ameaçaram e o forçaram a ir além dos seus limites. Em muitas de nossas
conversas, eu e ele ponderamos sobre a necessidade de diminuir o ritmo, de não nos
tornarmos escravos completos das exigências que o mundo impõe fora de nós. E
chegamos à conclusão de que a Lei da Sincronicidade, descoberta pelo psiquiatra
Gustav Jung, ou as possibilidades do vazio na ciência quântica, ou ainda, de um
modo mais simplificado, a ideia de Deus, da Divindade, de uma força maior, ou
outro nome que lhe seja dado, esta potência superior que a tudo rege e
administra, e que também vive em nós, estaria profundamente ligada à ideia do
ritmo, do sentimento e sensações geradas no tempo em nosso interior. A partir
disto, e de minhas posteriores experiências com o autismo, que é uma
desorientação profunda do ritmo, do tempo interno do próprio corpo, cheguei a
uma definição, a uma conclusão pessoal sobre este conceito aparentemente tão insondável
que a humanidade veio a chamar, entre outros nomes, de Deus ou Divindade. Com
certeza diz respeito a cada um de nós, com o que fazemos a cada dia em nossas
vidas, e principalmente com o nosso tempo, com o nosso ritmo pessoal. Convido
ao leitor conhecer esta definição sobre a Divindade do ponto de vista do ritmo,
no fim desta obra, O Muro Devorador.
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