A Palavra-Arte. Música. Magia. Ritual. Teatro. Alan Moore, premiadíssimo roteirista inglês de histórias gráficas, viria a unir esses elementos após um acontecimento muito particular em sua vida. A propósito, ele mesmo conta em certa entrevista:
“Cerca de dez anos atrás, em 1993, quando eu fiz 40 [anos], subitamente decidi anunciar que havia me tornado um mago; só pra me divertir um pouco, realmente. Mas todo mundo me levou a sério. Então eu tive de realmente fazer alguma mágica.”
Moore define magia: é a ciência de manipular símbolos (palavras, imagens etc), visando alterar a consciência. Considera um Grimório, livro de encantamentos, uma extravagante estrutura de gramática. Nesse sentido, a arte da escrita, assim como qualquer outra forma de evocar sensações, alterar pensamentos, provocar sentimentos, tornam-se recursos encantatórios ou mágicos.
Decidindo-se aprofundar na magia, Alan Moore percebeu que a forma ideal para explorá-la na prática seria “um tipo de mídia mista”. Unindo-se ao guitarrista David J. e ao músico Tim Perkins, o mestre dos quadrinhos nomeou o seu grupo de O Grande Teatro Egípcio das Maravilhas, e passou a apresentar vários espetáculos, performances teatrais, nas quais a palavra, o movimento e a música uniam-se e se completavam mutuamente.
David J., músico e amigo do escritor, relata em entrevista para o jornal L.A. Weekly que, na criação do primeiro espetáculo, “A Lua e a Serpente”, o texto veio primeiro, com Alan Moore escrevendo a narrativa; e somente depois, em estúdio, se adicionaram outros elementos (efeitos sonoros, a iluminação, efeitos de palco, etc). Alan recitou seu próprio texto com uma voz trovejante durante o espetáculo. David, trajando uma máscara branca, fazia gestos rituais, que acompanhavam a narração. É ele, o próprio músico, que comenta:
“Foi um tremendo sucesso, como uma peça de teatro mesmo. Até penso que estava de alguma forma conectada com as ideias de Antonin Artaud, com o seu ‘teatro da crueldade’. A audiência foi totalmente envolvida e estou certo que, de alguma forma, quebramos alguma barreira (...) Levitamos os espectadores, simultaneamente perturbando-os e liberando-os, numa senhora experiência, para eles e para nós.”
O teatólogo francês Antonin Artaud, citado acima pelo músico, pretendia quebrar a barreira entre o palco e plateia; fazer com que esta última fosse parte integrante do acontecimento teatral, que deveria ser como um ritual de rigorosa purificação. Artaud defendia o que chamava Teatro da Crueldade. Ele mesmo explicou que com crueldade não queria dizer exatamente violência ou sangue, mas sim rigor, uma espécie de ação decisiva alcançada pelo impacto de meios teatrais. O público deveria ser envolvido, arrastado irresistivelmente pelo espetáculo, sem poder evitar ou escapar, de modo que corpo e mente sofreriam uma quebra dos seus bloqueios e repressões.

Esse intento de Artaud provavelmente possa ser melhor compreendido por meio de uma performance que Alan Moore e seu grupo realizou em Chicago. A própria canção do espetáculo tinha um nome muito sugestivo. Chamava-se “Antonin Artaud”. Ainda em entrevista para o jornal L.A. Weekly, David J. narra também esse acontecimento. Segundo o músico, em entrevista a uma rádio, o público foi convidado a fazer parte do espetáculo, a levar consigo elementos como paus e barras de metal, ou seja, o que fosse capaz de produzir percussão. Já no início da apresentação, a audiência deparou-se com um efeito espantoso e ritualístico: Alan e seu grupo apresentavam-se sem camisa, somente de calça, com pinturas sensíveis à luz ultra-violeta. David descreve que o público participou normalmente, utilizando os elementos de percussão. Contudo, após um tempo, percebia-se um clima de receio geral, e mesmo medo. A plateia, parecendo entrar num paroxismo, começou a bater com uma força diferente os bastões de metal e de madeira. Era surpreendente o modo como todos se soltavam; atingiu-se um nível praticamente de histeria, em que o público gargalhava incontrolavelmente, se contorcia e delirava. Enfim, David termina sua narrativa. A atmosfera em torno da plateia teria começado ficar mais sombria, para somente depois se atenuar, voltando a seu tom anterior, mais celebratório.
Entendeu-se pelo relato de David que o espetáculo participativo envolveu gradativamente a consciência do público, até levá-lo a um momentâneo choque interior, fazendo grupos de sensações e sentimentos serem dramaticamente liberados. Não houve escapatória ou fuga do acontecimento, mas - ao contrário -, uma total entrega. A apresentação firmou-se como uma experiência transformadora, impossível de ser ignorada. Ou de total rigor, como o queria Artaud.

Com essas performances teatrais, nota-se que Alan Moore chega a um supremo ápice da utilização da Palavra. Partindo dos quadrinhos, onde a encantação da letra unia-se a imagem para alterar consciências; levar o leitor a um novo espaço-tempo fora do comum, a palavra-arte de Moore, agora pela própria voz do escritor, se apresenta ao vivo, mistura-se a outras palavras, na verdade outros códigos mágicos de escrita, que são propriamente teatrais (a iluminação, o movimento, a música...), todo esse conjunto sensível, uma formidável orquestra da qual a única e verdadeira palavra salta, invisível e elétrica; e o ritual enfim permite que essa palavra se propague, flamejante, que tome conta dos corpos, das mentes, para despertar verdades escondidas, liberá-las da alma, das suas profundidades ocultas, de outro modo inalcançáveis.
ALGUMAS PALAVRAS DO PRÓPRIO ALAN MOORE:
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